sábado, 19 de maio de 2018
seis de maio
Um beija-flor invadiu meu apartamento. Sim, isto foi a primeira coisa que eu pensei: como é que um beija-flor veio parar aqui no sexto andar? Ele sobrevoou todo o espaço da casa em plena luz do dia, colorido, ligeiro e rasante, entrando nos quartos e logo acompanhando meus passos em voos espirais sobre a minha cabeça. Olhei para o alto, mirei a criatura tentando captar um instante do seu estonteante voo. Tive então uma ideia muito maluca, mais maluca que um beija-flor no sexto andar de um edifício. Levantei meu braço esquerdo com cuidado, fazendo-o de galho, fazendo-me de árvore, mesmo naquela posição da árvore da ioga, pronta para acolher o bicho em seu - ainda que breve - descanso. Porque uma hora ele se cansaria, imaginei. Só que inesperadamente, acreditem, ele pousou lentinho, bem na palma da minha mão. Isso muito me perturbou: como é que pode um beija-flor, logo um beija-flor, pousar assim tão perto de mim? Eu-árvore fui então baixando o meu braço-tronco com a mesma velocidade dos galhos que se movem ao vento, e foi assim que eu o trouxe pra mais perto de mim. Pude então sentir-lhe a respiração, contemplar-lhe o bico pontudo e afiado, suas asinhas diáfanas azul-cintilantes e até a poeirinha de cor que saía delas, colorindo o ar ao redor. Aquilo parecia fumaça, mas era pura cor de um azul que eu nem sei definir. Também não sei explicar o amor que nasceu desse encontro. Num gesto de afeto, coloquei o passarinho contra meu peito e com a outra mão fiz uma conchinha para protegê-lo de tudo ao nosso redor. E eis que de súbito apareceu, também no sexto andar, dentro da minha própria casa, uma coruja amarela em voo rasteiro resvalando nas minhas pernas. Seu ataque quase desestabilizou a árvore que eu era ali naquele momento. A coruja de olhar fixo em minhas mãos claramente ameaçava o beija-flor, mas ele, protegido dentro das conchinhas, bem rente ao coração, nem se dava pelo perigo. Não sei se loucos, alheios ou corajosos diante do risco, nós respirávamos tranquilos em nosso ninho concha coração do tronco frondoso. Espantei a coruja amarela, como eu não sei explicar, talvez balançando meus galhos em sua direção, talvez com um direto e fulminante olhar... por uma questão de sobrevivência. Mas quando dei de novo por mim, beija-flor, coruja, árvore e eu, éramos tudo uma coisa só. No sexto andar de um edifício sem telhados, o sol do meio dia sobre nós, vento soprando em espirais coloridos, todos os pássaros alçando voos, galhos dançando ao vento. E foi no meio de toda essa confusão que eu acordei.
sábado, 5 de maio de 2018
acorda
a corda sempre quebra do lado mais fraco
a corda sempre rompe quando o lado mais forte
parte pra cima e se aparta do lado mais fraco
às vezes sem saber que o todo não tem lados
às vezes sabendo que ao quebrar o lado mais fraco
o mais forte ataca e aparta também
do todo o mais debilitado pedaço
esse do lado de fora
quebrado abatido apartado
que era parte do todo
e agora é mil pedaços
estilhaços de vidro do prédio
corpos estirados no asfalto
restos de vida no passeio público
em invisível retrato.
mudo
o lado mais fraco é quem morre na guerra
mas quando se enxerga como presa de um laço
da corda do tiro do murro
usado pelo lado mais forte
para a guerra pela grana pelo tráfico
esse lado apartado do todo às vezes se rebela
e parte cego pra cima de fortes e fracos
suicida kamikaze que morre mas mata
nem sempre sabendo que na sua cruzada de abate
é sempre os fortes que a História consagra
e para o lado mais fraco o silêncio é a paga.
vencida era a nossa
partida em um milhão de pedaços
tão perdidos no meio de fortes e fracos
éramos um, éramos tantos éramos tudo
- e agora quem somos nós?
- qual a parte que nos cabe?
estamos sós sem laços
tristemente acordados
trapos de corda partidos
morte por todos os lados.
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