domingo, 8 de abril de 2018

um café



Agora percebo muita coisa diferente no lugar. Descubro mais verde, mais jardim, plantas mais altas, algumas cercas separando o pomar da área de passagem, os caminhos cuidadosamente ornados com pedras e tijolos que nos conduzem do portão da rua até a entrada do restaurante. Cercas novas também demarcam o local do estacionamento. Mas a casa continua a mesma, o mesmo alpendre ao redor do espaço interno, os quadros coloridos nas paredes, uma divertida originalidade com jeito de anos setenta, oitenta, noventa e século vinte e um, tudo misturado. É uma casa divertida. A sua porta de entrada dá para uma área central de passagem que liga as duas laterais: do lado direito, a cozinha; do lado esquerdo, uma sala de estar simples e aconchegante, com livros, mesa, um computador. Janelas grandes, sempre abertas, fazem ver a movimentação das pessoas que vieram para o almoço de domingo. Vinte, talvez trinta. Na verdade, não faço a menor ideia.
Lembro, da última vez que estive aqui, de uma música no ambiente, baixinha, algo instrumental, intimista e desconhecido. Hoje a música da casa está por conta de um senhor que chegou ainda há pouco, logo depois de mim. Ele passou carregando uns equipamentos de som e um violão encapado. Então no vão maior do alpendre (não onde me encontro, embora de onde estou eu o veja bem) ele montou todo o som: duas caixas acústicas em pedestais e o violão, tudo ligado a um amplificador portátil. Nesse momento ele está tocando e cantando músicas de um repertório de MPB. Poucas músicas eu não conheço, a maioria delas é conhecida, de Tom Jobim, João Gilberto, Toquinho, Paulinho da Viola... Mergulho então nesse passado gostoso, guiada pela música melodiosa dos dedilhados seguros e da voz gostosa desse senhor.
Quando cheguei, Pedro me recebeu ainda no portão e me levou a uma mesinha que, descobri logo pelo meu sobrenome marcado nela, havia sido carinhosamente reservada pra mim. Perguntei por Larissa, soube que ela estava lá dentro, na cozinha, terminando de preparar os pratos para servir o almoço. Nós três somos velhos conhecidos, tão velhos quanto a idade dos meus filhos. Tão velhos quanto a idade do próprio restaurante. No dia anterior, quando, por telefone, eu lhe pedi o mapa para achar o local, ele me perguntou se eu iria com as crianças. Disse que não. Então acho que ele sabia que eu estava sozinha e devia ainda se lembrar que nas idas assim eu gostava de aproveitar o tempo e aquele ambiente agradável pra relaxar, geralmente lendo ou fotografando as flores dos jardins do sítio. Mas hoje eu cismei de escrever. Sim, é um domingo especial, domingo de feriado. Mas não é bem por isso que eu cismei de escrever. É que a escrita agora me tem sido uma obsessão, tanto que ultimamente me sinto até acompanhada. Acompanhada da caneta, do caderno, e do olhar que quer ser preciso, mas termina por imprecisar as coisas ao meu redor. Tudo exercício de palavras. Às vezes atenta, às vezes dispersa, passeio no caos. Às vezes tanto faz.
Então. Fui conduzida por Pedro a essa mesa redonda e pequena, perto da porta de entrada. Espaço arejado, protegido do sol, margeado por plantas, uma graça de lugar. Sentei-me na cadeira, uma linda cadeira pra chamar de minha, a única naquela mesa. A superfície está forrada com uma toalha de seda branca desenhada de flores em relevo. No centro da mesa, uma garrafa de vidro cheia de água faz as vezes de jarro. Dentro dela, dois galhos de pitanga, cheiro fresco e pontas alaranjadas. Mimos da casa. Agora sob a mesa o jarro improvisado divide espaço com um livro, dois cadernos, meu estojo de lápis e o prato do almoço vazio. Desorganizada harmonia. Já almocei. Comi uma vistosa salada de vários tipos de folhas e grãos, uma seleta de legumes, algumas fatias de pão caseiro com pastas de sabores variados. Uma delas acho que era de grão de bico, a outra era uma pasta de alho muito saborosa. A terceira talvez fosse de gergelim e a quarta parecia um creme de iogurte, mas sei que não era iogurte porque o restaurante é especializado em comida vegana, então entre conhecer o ingrediente e apreciar o seu sabor, fico mesmo com o sabor, desde que seja gostoso. Atraiu-me essa ideia dessa experiência sensorial, presente me dei hoje, domingo festivo. Agora estou eu aqui, uma mão empunhando uma caneta, a outra empunhando uma colher, entretida entre as palavras e as sobremesas, ouvindo esse homem de voz doce cantando e tocando seu violão.
Na minha frente, bem na curva do alpendre, há outra mesa redonda, maior que a minha, ocupada por um senhor, uma senhora e duas mulheres mais novas que eles. Uma delas, a mais falante, está grávida, já com a barriga bem aparente sob a bata branca. Há ao lado dela uma cadeira vazia, talvez de uma quinta pessoa ausente nesse momento. Eles ainda estão almoçando. Com semblante feliz e fala sorridente, a moça tenta explicar, com base em suas mais recentes experiências, as alegrias e tristezas desse interessante evento chamado gravidez. Nessa hora Pedro passa por nós perguntando se estamos bem, se nos falta alguma coisa. Entra na cozinha e logo depois retorna com uma garrafa branca. É o chá. Deixa-a então ao lado da outra garrafa, a garrafa preta, de café, junto das pequenas xícaras, das colherinhas mergulhadas em um copo com água, do açúcar e do adoçante, todo esse conjunto sob um console cuidadosamente forrado com um delicado pano de renda, bem perto das nossas mesas.
A moça grávida começa a contar como foi o seu início do dia de hoje, narrando com mensurados pormenores, uma a uma, todas as coisas que fez antes de chegar ao restaurante. A ordem dos fatos e a graça dos detalhes me chamou atenção. Levantei às oito, tomei café com torradas, duas torradas, depois tomei um banho porque está muito calor nesses dias, dei comida pro gato, coloquei a roupa na máquina de lavar, pedi ao meu filho que se apressasse porque não queria chegar atrasada, combinamos estar aqui meio dia em ponto, peguei vocês no caminho, aqui estamos nós, a vida é corrida, nossa, como o tempo passa depressa, então tá, daqui a pouco vamos embora. O casal de velhinhos presta tanta atenção que chega a parar de comer. Até os garfos e as facas pousados sob seus pratos parecem esperar pelo relato da moça grávida. E eu não sei quanto às outras grávidas do mundo, mas aquela grávida ali claramente virou o alvo de todas as nossas atenções no momento. A moça agora está falando da vontade louca que teve de comer tapioca hoje pela manhã. Conta nos dedos quantas horas pra trás isso aconteceu, e olha para o lado, chamando a atenção do menino que brinca no jardim, bem próximo ao alpendre, entre a minha mesa e a mesa onde eles estão. Então a cadeira vazia deve ser desse menino, um menino de seus seis anos no máximo. A criança é o seu filho, o filho que, entre a comida dos gatos e a roupa na máquina de lavar, deve ter se apressado pra não atrasar a mãe. Nesse instante, a outra mulher jovem, não tão jovem quanto a moça grávida, também se lembra das suas agruras de gravidez. Relata os enjoos, os incômodos, o quanto de tempo que dura essa etapa mais curta e sofrida da feitura de um bebê dentro do corpo da mulher. Depois do primeiro trimestre tudo é festa. Nem tudo meu bem, tem o parto, não se esqueça. A mulher mais velha ouve e faz sinal com a cabeça, concordando com elas.
Pedro passa por nós. A música recomeça. A conversa ao lado continua. Voz e violão, cantigas melodiosas de antigamente, não tão antigamente assim, mas de um tempo já perdido nas eras dessas incontáveis horas, dias, anos e décadas que passam rápido demais. As letras das músicas agora se misturam com as vozes ao lado, entre relatos sobre as idas ao médico e os exames de rotina. Reconheço Cartola me lembrando que as rosas não falam, simplesmente as rosas exalam o perfume que roubam de ti. Um rapaz vai ao console, tenta se servir de café e percebe que a garrafa preta está quase vazia. O café acabou, grita Pedro para a cozinha. Bate outra vez com esperanças o meu coração. E faltam seis semanas para o parto, mas está fazendo um calor insuportável nesses dias, nessa noite acordei pingando de suor. Olha, está saindo um cafezinho maravilhoso, chega já. Dedilhados de violão. Ainda é cedo, amor, preste atenção, o mundo é um moinho. Risos atrás de mim. Larissa se aproxima e me pergunta como estou. Estou bem, tentando escrever. Gritos das crianças também fazem música. Você abusou, tirou partido de mim, abusou. Olha que chegou o café novo. Mamãe, vamos pra casa? Ao meu lado, mãos de homem seguram uma xícara de café verde. Xícara verde. Não café verde. Você abusou, tirou partido de mim, abusou, mas não faz mal, se o quadradismo dos meus versos vai de encontro aos intelectos. Será quadradismo mesmo? Que palavra estranha. Pernas cruzadas, xícara verde nas mãos, Pedro passa por mim novamente. O sol está forte, tomara que o trânsito esteja tranquilo e que a gente chegue logo em casa, porque esse calor está insuportável. Será a gravidez? E me perdoe se eu insisto nesse tema, mas não sei fazer poema ou canção que fale outra coisa que não seja amor. As xícaras são diferentes, todas tão diferentes, cores, tamanhos e formas diferentes. Xícaras de chá e de café, todas diferentes. Foi um grande prazer recebê-los, diz Pedro ao se despedir de outro casal, não o casal de velhinhos que está na minha frente. Outro casal. O cheiro do café está ótimo. Olha que coisa mais linda, mais cheia de graça, é a menina que vem e que passa. Pedro passa por mim, mas volta, parando na minha frente. Ele fica admirado com a minha letra e com a velocidade da minha escrita. Ah, porque estou tão sozinho, ah, porque tudo é tão triste. Sorrio sem graça. Se ela soubesse que quando ela passa o mundo inteirinho se enche de graça e fica mais lindo por causa do amor. O músico termina sua apresentação e agradece à plateia. Aplausos. Eu não aplaudo, caneta na mão. A plateia vai em peso para o console, todos agora se aglomeram em torno da garrafa preta. Xícaras coloridas. A música dos gritos das crianças. Decido então que eu também quero café. Fim da escrita.

Natal, 01/04/18.

(ps.: a foto é antiga, mas o lugar é o mesmo)

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