domingo, 4 de novembro de 2018

Crônica em tom de cantiga de ninar

Somente quando o homem vestido de palhaço sentou no banco atrás do meu, pude perceber que, na verdade, ele era quase um menino. O barulho costumeiro do fim da tarde – sirenes, buzinas e gente gritando lá fora e dentro do ônibus – não deixou que ninguém ouvisse a propaganda das balas, a fala apelativa, os trejeitos desconsertados e a já cansada alegria do homem vestido de palhaço para vender aqueles doces por apenas um real que deus lhe dará em dobro, aquele apelo quase cantado que todos já sabem de cor. Atrás do banco onde eu estava sentada, depois de recolher os doces sem venda alguma, o palhaço logo se acomodou num longo suspiro. Aquela viagem parecia cansativa.
“Nós vamos sobreviver”. Uma voz feminina falou baixinho atrás de mim.
Uma criança, exatamente atrás de mim, parecia brincar com algum objeto. De relance, consegui ver pelo vidro o reflexo do seu rostinho colado na janela, perguntando com as letras trocadas quanto tempo faltava para chegar em casa. O menino vestido de palhaço a chamou de filha, pediu que tivesse calma, que logo estariam em casa. Na verdade, ele não era nem tão menino assim. Sua voz era tímida, carinhosa, quase um acalanto. Uma voz feminina também sussurrava algo parecido com uma melodia, uma cantiga de ninar. A esta altura, não consegui mais evitar. Deixei de observar a paisagem de todo dia que passava pela janela do ônibus para colher aqueles lampejos de sons, músicas e palavras do homem vestido de palhaço, da mulher e da criança sentados no banco atrás de mim.
“Quando eu não estiver mais com vocês, quero que vocês não desistam. Ainda falta tempo, acho que vai demorar um pouco. Enquanto isso, a gente vive como dá, e eu vou cuidar de vocês até quando eu puder caminhar. Depois, aí a gente dá um outro jeito. Mas eu quero que você fale de mim pra ela. Diga a ela que eu a amo e que gostaria de ficar mais pra ver a minha menina crescer. Cuide bem dela. E cuide de você também. Olha só, as balas rendem pouco, mas dá pra tirar algum trocado pra comer. As pessoas gostam de palhaço, palhaço vende mais do que gente de cara limpa, sabe? Hoje não, que o dia não foi bom como você viu, mas nem todo dia é assim. Pintar a cara é a parte mais demorada, tem que caprichar, boca vermelha, olho marcado de preto, bem desse jeito. E tem a roupa, que você improvisa como eu. Com o tempo você acostuma. É uma forma de ganhar um trocado, e depois a gente até pode comprar um isopor pra vender água também. Ah, trate bem os motoristas, são eles que abrem as portas, mas cuidado, porque você é menina. Tem homem que acha que a menina vendendo bala tá querendo vender outras coisas também. Homem não presta. Fique esperta. Fique esperta. E prometa que vai se cuidar.”
A voz feminina, que brincava baixinho com a criança, se calou. O silêncio que rompeu depois desse pedido pareceu durar um trajeto inteiro de viagem. Não se ouvia mais o barulho do trânsito do final da tarde. A música que a mulher cantava cessou, a criança, quase um bebê pra falar a verdade, não falava mais. Poderia ela ter adormecido no colo da mulher.
Levantei-me, pedindo parada. Olhei para trás. Era um homem vestido de palhaço, quase um menino, uma criança, quase um bebê, uma menina, quase mulher. Abraçados uns aos outros, não diziam mais nada. Aquele silêncio, agora também em mim, falava por eles, falava por nós, falava pelo mundo, naquele ônibus cruzando a ponte, emoldurado pelo sol poente sangrando nas águas do Potengi.
Nós vamos sobreviver.

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