Morava numa linda casa de vidro e vivia feliz (todos os loucos, acredite, deveriam morar em casas de vidro!). Um dia, porém, viu que naquele lugar as coisas aconteciam muito lentamente, levadas ao sabor monótono do cotidiano. Pensando nisso, começou a achar sua vida meio sem graça. Resolveu, então: queria fazer alguma coisa bonita, e mesmo que fosse apenas uma coisa só, tinha que ser algo único, maravilhoso, grandioso como só poderia existir na mente de um louco. Saiu ele pela primeira vez do seu lar mas voltou logo, trazendo uma tela não muito grande, pincéis, paleta, cavalete, paninho, potinhos, solventes, vernizes e tintas, muitas e muitas tintas, das mais variadas cores e tonalidades e marcas e tamanhos. Arregaçou as mangas e iniciou sua obra prima, aquela que deveria ser a única da sua existência de pintor.
Foi aí quando tudo começou...
Na tela, aos poucos, surgia um azul profundo, iluminado, doce, porém sem aquela tristeza fria e melancólica dos outros azuis turquesa royal marinho cobalto e anil. Era um azul de céu que perdia o horizonte. E de um céu que saltava de dentro da tela para o mundo, tingindo de azul aquelas manhãs tão pálidas. A tela, aos poucos, foi se transformando, pelas mãos e pelos olhos daquele homem, numa janela toda aberta para o céu. Então cada pessoa que passava pela casa de vidro do nosso pintor parava e ficava ali, só observando. Estudantes, donas de casas, pedintes, velhos, crianças, o vendedor de pipoca, os vizinhos, todos pararam para ver o insano pintar. E não apenas as pessoas pararam... Você não leu nos jornais? Isso mesmo! O tempo, esse também parou para observar nosso pintor. E todos os ponteiros de todos os relógios do mundo pararam para não perturbar a concentração do artista. Os homens de negócio, os diplomatas ditadores generais ficaram fulos da vida por causa do prejuízo e quiseram, a todo custo, punir o responsável pelo crime inafiançável de parar o tempo. Mas quem manda nos sonhos de um louco? E quem tem coragem de impedi-los? O fato é que ele continuava ali, pintando, pintando, pintando, e o céu era cada vez mais e mais azul. Então não fez mais sol, não anoiteceu, não choveu nem teve mais arco-íris (para a tristeza dos anjos) desde que o mundo parou para aquele homem.
É, mas tem um tempo em que tudo acaba. E como o tempo já estava parado mesmo, não foi propriamente numa hora específica, mas, enfim, chegou o momento do pintor concluir sua obra prima. E foi um espanto!
Os homens olhavam e olhavam para o quadro e o que viam era... ora, era apenas um céu azul, vazio, emoldurado por uma janela minúscula que era aquela tela. Uns olhavam para os outros, tristes, atordoados, decepcionados... voltaram a pensar, questionar, opinar e, aos poucos, tudo retomou seu curso. As pessoas ali paradas, despertas daquele estado de transe hipnótico causado pelo vai-e-vem dos pincéis do artista, aos poucos retomaram suas tarefas cotidianas, e o tempo voltou a andar nas horas vagas dos ponteiros de todos os relógios do mundo que, ainda sonolentos, voltaram a funcionar. Os estudantes foram para a escola, as donas de casa para casa, os pedintes continuaram pedindo, o pipoqueiro retomou o caminho solitário de todos os dias, empurrando seu carrinho de pipocas, as crianças se voltaram para suas brincadeiras. E os anjos? Ah! Os anjos puderam novamente ver os arco-íris. Só o nosso homem ficou ali, parado, observando sua obra. MA RA VI LHA DO!
É que, na qualidade de insano, o que ele via ia muito além do azul que enchia aquele espaço tão pequeno para a alma de um louco. O nosso pintor estava certo: sua obra seria única. E ele via tudo o que as pessoas não viram nem jamais veriam, embora talvez até tenham desejado ver: cavalinhos de carrossel correndo pelos campos, bandeirinhas, vacas amarelas bois da cara preta bezerros desmamados burros de carga camelos cachorros vira-latas lobos leões gatos de rua girafas elefantes brancos preguiças gigantes macacos marrecos mastodontes ornitorrincos onças pintadas porquinhos da índia sapos zebras de futebol, todos passeando ociosamente; papagaios (de todos os tipos: do que fala, do que voa, papagaio de coluna, papagaio que a gente tem que resolver, mais alguns inventados pelo louco, e outros que ainda não têm significado), pássaros orientais de olhinhos apertados, caixas e caixas de goiabada cascão (é que o nosso pintor adorava goiabada cascão!). E tinha também fadas bruxas homenzinhos feiticeiros de barba branca duendes anões de jardim anjos (aqueles do arco-íris!) mulas sem cabeça homens da lua cangaceiros navegantes indiozinhos pinguinhos de gente e umas bolinhas com pernas que andavam de um lado para outro. E tinha música: para cada canto que a gente fosse tinha meia dúzia de músicas diferentes tocando simultaneamente, todas regidas por uma principal, que era a musica de caixinha do realejo que anunciava as apresentações do grand circo de moscou. Tudo isso e muito mais saltava da janela para os olhos do pintor. Ele ficava ali, horas e horas, observando o movimento, tomando cuidado para nada ficar muito tempo no seu lugar e atrapalhar a perfeição da sua obra.
Um dia o louco sumiu. Desapareceu. Virou fumaça. Teria ele viajado? Ido visitar a tia velhinha de Minas? Meu Deus, teria ele morrido e sua alma voado para o paraíso dos loucos? (Como deveria ser o paraíso dos loucos?) Ninguém sabia e, pra falar a verdade, ninguém se importava; todos estavam muito preocupados com o tempo e os afazeres e o dinheiro pra comprar a comida da semana que vem. A casa estava vazia... bom, pelo menos isso as pessoas podiam ver pois, como já disse, a casa era de vidro. Apoiada no cavalete apenas a tela, já empoeirada, olhava para o mundo lá fora.
Passaram-se dias meses anos segundos. Até que numa dessas belas manhãs sem sol apareceu na cidade um tal de poeta (ninguém lá sabia o que era ser um poeta) e este, passando pela rua da casa de vidro, parou e ficou só olhando. E não precisou entrar na casa para ver a tela ali ao canto da parede, apoiada no cavalete. Olhou, olhou, olhou... E VIU!!! Foi esse o momento mais mágico de todos, o momento em que o olho do poeta encontrou-se com o olho do pintor que (Ahááá!!!) estava lá dentro escutando música e descansando... ociosamente. O poetinha, que não era bobo e sabia muito bem quando estava diante de uma oportunidade única, não contou conversa: tirou de sua mochila um caderninho, uma caneta e uma enorme cadeira de poeta, dessas bem confortáveis, acolchoadas e com um degrauzinho para os pés (a mochila do poeta era E N O R M E! Você precisava ver!), e pôs-se a escrever, escrever, escrever. Seria sua obra prima. Uma poesia que falava de um louco pintor (e que tinha os olhos mais brilhantes do mundo) que resolveu um dia fazer parte da sua criação — e fez! Agora ele estava lá, descansando com os animais e as bruxas fadas duendes anões de jardim... — bom, essa parte você já conhece.
Naquele instante as pessoas começavam a parar para ver o poeta compondo sua obra: estudantes, crianças, donas de casa, pipoqueiro, tempo... O TEMPO???
— Ah! Então foi quando tudo recomeçou...
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