Há dez anos, numa manhã de trinta e um de dezembro, eu vi, a
poucos metros de mim, uma menina morrer afogada, na praia de Santa Rita. Nesse
dia, eu saíra para caminhar na beira do mar, como sempre fazia (eu morava na praia
da Redinha), e, por ser o último dia do ano, aquela caminhada tinha, em
especial, o objetivo de agradecer pelo ano que passou e renovar os sentimentos
de esperança, coisas que muitos fazem nesta passagem simbólica de datas. Há
exatos dez anos, meu sentimento de pertencimento ao mar drasticamente se rompeu
ao ver uma menina de treze anos morrer afogada, em um dia trinta e um de dezembro,
sem poder fazer nada para impedir tal acontecimento. E foi tão rápido e estúpido
o afogamento, que levei algum tempo para perceber o que de fato ocorrera ali: a
menina de treze anos acenou para uma outra menina que estava ao meu lado, fora
da água, quando uma onda pequena a cobriu e ela simplesmente desapareceu. Não
houve desespero, não houve agonia, não houve qualquer sinal da tragédia que ali
se anunciava. Segundos depois, a menina ao meu lado começou a gritar pelo seu
nome. Eu, que estava caminhando, mas, naquele instante, parei para contemplar aquela
cena, procurei no mar por algum sinal da menina, primeiro um braço, depois um
movimento de onda incomum, e, por último, alguma cor diferente do espectro branco
e verde esmeralda das espumas e águas do mar. Nada. Por último, começaram a procurá-la nas águas alguns surfistas que estavam por perto, assim como os guarda-vidas
que chegaram uns quinze minutos depois do desaparecimento. Resgataram o corpo
da moça mais de vinte minutos depois do instante do afogamento. Presenciei, ali
parada, todos os esforços dos bombeiros para trazê-la a vida: a retirada do
corpo das águas, os procedimentos de ressuscitação: respiração artificial,
massagem cardíaca, pelo longo tempo que mais pareceu uma eternidade, até a
palavra final dita pelo bombeiro: hora do óbito. Eu não lembro o nome da
menina, soube depois que ela tinha treze anos e que passaria, com a família, as
festas de fim de ano naquela praia. Festa que não aconteceu. Naquele tempo, há dez anos, eu não era quem sou hoje, como também não seria mais quem eu fora
antes daquele acontecimento. Naquele dia, dia de preparativos para uma festa,
dia de renovar esperanças, dia de se despedir do passado e abraçar o futuro, o
presente daquela família também foi o meu presente. Uma dor imensurável, um
sentimento de impotência absoluta, a sensação de despertar no meio do caos onde
fincamos nossa parca existência, nos iludindo com inúteis atos, acreditando
que disso depende o futuro que se aproxima, pelo qual nada, nada podemos fazer.
Há dez anos a lembrança dessa menina me visita, todo último dia de todos os anos
seguintes, e eu sempre me pergunto onde estaria ela se, momentaneamente, tivesse
sentido aquela preguiça adolescente de entrar no mar naquela manhã. E ensaio um
passeio pelo caos da imaginação pensando que hoje, aos vinte e três anos, talvez
estivesse frequentando uma universidade, talvez tivesse até filhos, talvez
simplesmente ainda estivesse viva, e talvez nem gostasse mais tanto assim do
mar, e eu, sem saber da sua existência, talvez estivesse hoje em
alguma praia dessa orla, com minha roupa branca e nova estirada sob uma cama,
cozinhando algum prato requintado que não fosse ave, em meio aos preparativos mentais
para receber o ano novo com tudo de bom, paz, saúde, dinheiro, felicidade,
esperança etc. E talvez até eu acreditasse nisso da mesma forma que a maioria das
pessoas creditam. Aí eu me lembro da menina de treze anos que morreu afogada, sem futuro, sem ao menos ter tido a oportunidade de viver no mundo dos adultos, com tudo de bom e de ruim que ele
nos traz - coisas que desejamos aos nossos filhos, mesmo sabendo que eles vão sofrer entre amores e desamores, delícias e dores que são os presentes da vida. E lembrando dela, eu sempre desejo mesmo é desacreditar. Então eu acho que é por
isso que a memória dessa menina vem sempre aqui, se faz presente dentro de mim,
pra me lembrar que essas coisas fazem sentido quando acreditamos nelas, e é
preciso que acreditemos, porque só é possível acreditar em algo que não se vê,
apenas se imagina ou se deseja. Eu não posso dizer que acredito no inverno,
porque em algum lugar longe daqui ele, de fato, existe. Eu não posso dizer que acredito
na vida, porque ela simplesmente também existe. E também não acredito na morte,
porque a morte, assim como a vida, é um fato inexorável. Mas eu posso, sim,
acreditar no futuro, por ele ainda não existir. E posso desejar que ele seja
melhor do que o presente. E posso querer continuar vivendo, apesar de a vida às
vezes não ser nada fácil. E posso também desejar que daqui exatos 365 dias, quando essa
menina de treze anos voltar a me visitar e me perguntar: e aí? no que você vai
acreditar para 2019? Que eu possa dizer a ela tudo o que eu estou dizendo-lhe
neste exato momento: desejo viver com dignidade, com respeito pelo outro, com
ética, com esperança nesse tal futuro que não conheço, mas que acredito que ele possa ser melhor. Desejo que meu trabalho, para além do
meu sustento, continue me trazendo as mesmas pequenas alegrias que engradecem e
justificam a minha existência no espaço em que atuo. Desejo que meus filhos continuem crescendo
com saúde e que continuem a me ensinar muitas coisas que eu ainda não sei. Desejo
ser tolerante com os outros e comigo mesma. Desejo que o caos em que vivemos
faça, para nós, o sentido que nós quisermos que faça: seja com sementes de romã
guardadas na carteira, roupas brancas e novas, sete ondas à meia noite, queima
de fogos na orla e champanhe para beber o ano que inicia... Seja simplesmente
em casa, longe do mar, dormindo na hora de sempre e acordando com a luz do mesmo sol de todas
as manhãs. Porque para alguns a vida se renova a cada ano; para outros, ela se
renova a cada nascer do dia. E ainda bem que no mundo ainda há espaço para
todos.
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