domingo, 25 de junho de 2017

Diário de bordo: coragem

Aqui eu inicio minha imensa travessia, nesse barco náufrago que vai me levar a algum lugar. Devo esquecer, para poder prosseguir, o quanto dói lembrar. Dói lembrar. Dói lembrar. Mas não quero mais permanecer, embriagada pela maresia, quero deixar esse cais decadente, porque nada mais aqui me prende, nada mais aqui me conforta, nada mais aqui me acalma, mesmo que você insista sempre em repetir que todo porto é seguro. Não, nem todo porto é seguro. Porque esse porto em que estou, ao contrário, é ele que me segura, me prende, me impede de seguir todas as vezes em que você, com sua imponente natureza de terra firme, me convida a ficar. Só que esse mesmo porto também revela minha natureza de partir, também me sopra, numa canção de vento litorâneo, que só partindo eu vou me encontrar. Além do mais, esse porto não é meu. Porque eu nem tenho porto. Ter porto, logo eu, oceânica que sou? Não. Eu sei, pode parecer estranho, você pode pensar que sou louca, ou sei lá, mas uma das coisas, das poucas que aprendi, foi que é preciso estar perdido para se descobrir. Invejo todas as pessoas que partem, todas, sem exceção, pois elas, quando voltam, são maiores. Transbordam. Não cabem mais em si. E eu, me vejo aqui, presa, ancorada, e me sinto tão pequena, nesse porto que mais tem aspecto de terrosa prisão. É por isso que preciso ir. É por isso que preciso. É por isso. Então deixe. Me deixe. Deixe que eu vá. Não me impeça. Não me amedronte nem me fale de monstros. Quero ser eu o monstro, de tão grande, de tão transbordante, quando eu me resgatar. Esse meu barco é frágil, eu sei. É tão pequeno que só cabe a mim. Ainda bem. E tem velas velhas no lugar do motor. Ele poderia até ter motor. Mas não tem. Só tem as velas, e também um leme. Não, ele não tem instrumentos nem computador, mas tenho uma bússola, uma que guardei em algum lugar, que me servirá de guia, e quando eu aprender a usá-la, porque eu vou aprender a usá-la, você verá que, se a energia me faltar, se ela me faltar, saberei, e se não souber, aprenderei a seguir. Então, não adianta me pedir pra ficar. Mas, se quiser, recomende minha alma aos deuses, mas só àqueles deuses do mar. E que venha a dor. Porque num fôlego só, respirei coragem, e agora, nesse exato momento, eu quero é me jogar, jogar meu barco nas ondas, e ir. Apenas ir. Costurarei minhas velas rotas, reaprenderei a natureza das calmarias e tempestades. Respirarei sal e ar. E lembrarei. Vai doer, sei sei.  Mas só assim eu sobreviverei. Porque acredito, piamente, que esse barco náufrago vai me levar... a algum lugar.

sábado, 17 de junho de 2017

Meu Zine (publicação de abril de 2017)

Nenhum texto alternativo automático disponível.

Vou pedir um tempo ao Tempo

vou pedir um tempo ao Tempo
alegando insanidade de sentimentos.

Tempo, me dá um tempo
está difícil seguir do teu lado
me deixa sentir
me deixa chorar
até transbordar
me deixa ser
o que eu sou
sem ter que te dar
satisfações do que fui
ou certezas do que eu não sei
não me culpe pelo que fiz
não me cobre pelo que não quis

Tempo, me dá um tempo
Tempo, me deixa de lado
que a insanidade
é o meu surto
anunciado.

Tenho uma lâmina fincada no peito

Tenho uma lâmina fincada no peito.
Não sei se é flecha, 
navalha, espada ou punhal. 
O objeto, nem sei o que é direito
feito de matéria que não vejo nem posso pegar
porque o exato lugar onde está é de difícil acesso:
entrou pelas costas
e da lâmina só sinto a ponta:
- sobressalente no peito -
poente, aguda, cortante
dilacerantemente serrilhante
é a forma que se apresentou
e que dela eu me acompanho

e com ela eu me contento:
- minha lâmina -
fincada no peito.

Acostumei-me a me olhar no espelho 
e a ver a pontiaguda forma
roçar a superfície
sobressair ao vestido
abrir a camisa
desabotoando-lhe, uma a uma,
todas as vergonhas

revelando-me, uma a uma
todas as entranhas
e mostrando-se quase indiferente
só a ponta da lâmina
levemente 
incomodando a pele
- quase cicatrizada -
do peito. 


Acho engraçado ninguém nunca a ter notado.
A ponta quase não se vê
mas uma lâmina fincada em um peito
é algo que, à distância,
distingue o ser.
Tento entender.
Talvez porque eu quase não a veja.
Talvez porque eu quase não a perceba.
E, de tanto não perceber, esqueço.
Talvez porque essa ponta de dor seja só minha.
Carrego-a comigo e divido com ela experiências.
E por ela escolho destinos.
Porque ela
- a lâmina -
aqui fincada
- no peito -
me obriga a ficar.
Porque ela
- a ponta -
me conhece tanto

quanto
eu a sinto.

Tenho uma lâmina fincada no peito.
Sinto a lâmina em mim.
Sinto-me eu a própria lâmina.
Aí eu respiro 

e quase agradeço
porque ela 

- a lâmina -
- a ponta - 
- no peito - 
não dói quando respiro.
A lâmina de tudo o que em mim restou
só dói quando eu me lembro
ou quando me lembram 
o que sou.

Diário de bordo: script

Abri a porta. Entrei. Tirei os sapatos. Sentei no sofá. Olhei para o alto. Sorri. Lembrei do compromisso que perdi. Do abraço que não dei. Daquela conversa que, mais uma vez, adiei. Do sorriso que algum desconhecido deixou de dar porque a ausência tem dessas coisas. Faz a vida não acontecer. A vida é essa carroça que passa lá na rua e vai fazendo barulho, afugentando os passarinhos que descansam nos fios. Eles, em revoada, partem para um melhor lugar. Eu não. Não sou passarinho. Sou gente cansada, que quer ficar. Eu só fico. E deixo, sorrindo, a vida passar.

Maresia

vou adentrar
revisitar o mar que em mim habita:
...superfícies líquidas... 

...pensamentos abissais... 

...paisagens de azuis horizontais... 

meu mar, meu lar, minha imensa maresia,

que hoje é só calmaria de cais

em um lance de redes 

na salgada espera


do tempo 
e da poesia.

(in)cíclico


lembrar
que a gente 
sempre muda 
mesmo quando 
parece permanecer
a gente (re)nasce
e se (re)inventa


e se (re)conhece
(in)finitamente



e nos tornamos 
outros nós
além do que já 
(não) somos
mais


E caem as folhas...

Os ventos de outono
preparam camas
de folhas rubras
no meu canteiro
Sob elas deito pensamentos
reaqueço meus sentidos
teço gestos e experimento
vida de fio comprido
nesse meu velho tear
E de frio sei que não morro
porque vivo desse tempo
em que colho folhas rubras
e me aqueço em meu canteiro
pra ver a neve chegar.