Aqui eu inicio minha imensa travessia, nesse barco náufrago
que vai me levar a algum lugar. Devo esquecer, para poder prosseguir, o quanto
dói lembrar. Dói lembrar. Dói lembrar. Mas não quero mais permanecer,
embriagada pela maresia, quero deixar esse cais decadente, porque
nada mais aqui me prende, nada mais aqui me conforta, nada mais aqui me acalma,
mesmo que você insista sempre em repetir que todo porto é seguro. Não, nem todo
porto é seguro. Porque esse porto em que estou, ao contrário, é ele que me segura, me prende, me impede de seguir todas as vezes em que você, com sua imponente natureza de terra firme, me convida a
ficar. Só que esse mesmo porto também revela minha natureza de partir, também me
sopra, numa canção de vento litorâneo, que só partindo eu vou me encontrar. Além
do mais, esse porto não é meu. Porque eu nem tenho porto. Ter porto, logo eu, oceânica que sou? Não. Eu sei, pode parecer estranho, você pode pensar que sou
louca, ou sei lá, mas uma das coisas, das poucas que aprendi, foi que é preciso
estar perdido para se descobrir. Invejo todas as pessoas que partem, todas, sem
exceção, pois elas, quando voltam, são maiores. Transbordam. Não cabem mais em
si. E eu, me vejo aqui, presa, ancorada, e me sinto tão pequena, nesse porto
que mais tem aspecto de terrosa prisão. É por isso que preciso ir. É por isso que preciso.
É por isso. Então deixe. Me deixe. Deixe que eu vá. Não me impeça. Não me amedronte
nem me fale de monstros. Quero ser eu o monstro, de tão grande, de tão
transbordante, quando eu me resgatar. Esse meu barco é frágil, eu sei. É tão
pequeno que só cabe a mim. Ainda bem. E tem velas velhas no lugar do motor. Ele
poderia até ter motor. Mas não tem. Só tem as velas, e também um leme. Não, ele
não tem instrumentos nem computador, mas tenho uma bússola, uma que guardei em algum lugar, que me servirá de guia, e quando eu aprender a usá-la, porque eu vou aprender a usá-la, você verá que,
se a energia me faltar, se ela me faltar, saberei, e se não souber,
aprenderei a seguir. Então, não adianta me pedir pra ficar. Mas, se quiser, recomende
minha alma aos deuses, mas só àqueles deuses do mar. E que venha a dor. Porque num fôlego só,
respirei coragem, e agora, nesse exato momento, eu quero é me jogar, jogar meu barco nas ondas, e ir.
Apenas ir. Costurarei minhas velas rotas, reaprenderei a natureza das calmarias
e tempestades. Respirarei sal e ar. E lembrarei. Vai doer, sei sei. Mas só assim eu sobreviverei. Porque acredito,
piamente, que esse barco náufrago vai me levar... a algum lugar.
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