sábado, 17 de junho de 2017

Tenho uma lâmina fincada no peito

Tenho uma lâmina fincada no peito.
Não sei se é flecha, 
navalha, espada ou punhal. 
O objeto, nem sei o que é direito
feito de matéria que não vejo nem posso pegar
porque o exato lugar onde está é de difícil acesso:
entrou pelas costas
e da lâmina só sinto a ponta:
- sobressalente no peito -
poente, aguda, cortante
dilacerantemente serrilhante
é a forma que se apresentou
e que dela eu me acompanho

e com ela eu me contento:
- minha lâmina -
fincada no peito.

Acostumei-me a me olhar no espelho 
e a ver a pontiaguda forma
roçar a superfície
sobressair ao vestido
abrir a camisa
desabotoando-lhe, uma a uma,
todas as vergonhas

revelando-me, uma a uma
todas as entranhas
e mostrando-se quase indiferente
só a ponta da lâmina
levemente 
incomodando a pele
- quase cicatrizada -
do peito. 


Acho engraçado ninguém nunca a ter notado.
A ponta quase não se vê
mas uma lâmina fincada em um peito
é algo que, à distância,
distingue o ser.
Tento entender.
Talvez porque eu quase não a veja.
Talvez porque eu quase não a perceba.
E, de tanto não perceber, esqueço.
Talvez porque essa ponta de dor seja só minha.
Carrego-a comigo e divido com ela experiências.
E por ela escolho destinos.
Porque ela
- a lâmina -
aqui fincada
- no peito -
me obriga a ficar.
Porque ela
- a ponta -
me conhece tanto

quanto
eu a sinto.

Tenho uma lâmina fincada no peito.
Sinto a lâmina em mim.
Sinto-me eu a própria lâmina.
Aí eu respiro 

e quase agradeço
porque ela 

- a lâmina -
- a ponta - 
- no peito - 
não dói quando respiro.
A lâmina de tudo o que em mim restou
só dói quando eu me lembro
ou quando me lembram 
o que sou.

Nenhum comentário:

Postar um comentário